"Um povo livre sabe que é responsável pelos atos do seu governo. A vida pública de uma nação não é um simples espelho do povo. Deve ser o fórum de sua autoeducação política. Um povo que pretenda ser livre não pode jamais permanecer complacente face a erros e falhas. Impõe-se a recíproca autoeducação de governantes e governados. Em meio a todas as mudanças, mantém-se uma constante: a obrigação de criar e conservar uma vida penetrada de liberdade política."

Karl Jaspers

março 02, 2011

TESOURA E TESOURO


O adiamento da compra dos caças é uma das poucas propostas concretas de redução de despesas no anúncio de ontem.
O que houve de contraditório no anúncio foi a informação de que um novo aporte ao BNDES será feito na semana que vem.


É tirar lenha da fogueira e colocar outra.
Tornou-se perigoso hábito o de anualmente o Tesouro se endividar para transferir dinheiro para o banco em supostos empréstimos.


O BNDES sempre viveu com os seus fundos, como o FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), o retorno dos créditos concedidos e as capitalizações do Tesouro.
Com o dinheiro que será transferido este ano pelo Tesouro, o banco vai acumular perto de R$300 bilhões de recursos recebidos desta estranha nova fórmula, desde 2008.


Se tivesse se limitado ao período mais agudo da crise, em 2009, seria possível entender.
Por ter se tornado prática comum, virou orçamento paralelo.
O Tesouro finge que empresta e assim os números não entram na contabilidade da dívida líquida, já que supostamente no futuro o banco vai pagar.
Isso não é arriscado apenas do ponto de vista fiscal:

reduz a transparência, tira a consistência dos indicadores fiscais, concentra a renda e reduz a qualidade da democracia.


O ministro Guido Mantega disse que os subsídios foram cortados da previsão original.
Serão R$7 bilhões, dois bilhões a mais do que no ano passado, mas abaixo do previsto.
O corte, explicou, é porque serão elevados os juros do BNDES.
Ele se referia a um específico programa, o Programa de Sustentação de Investimento, que tem juros ainda mais baixos do que os normais.


Todo o subsídio do BNDES deveria estar no orçamento para que a sociedade acompanhe as despesas feitas com o seu, o meu, o nosso dinheiro.
As contas públicas precisam ter transparência porque assim se firma o conceito democrático de que os contribuintes têm o direito de saber de quem o governo recolhe seus impostos e a quem os transfere.

Por isso, jornalistas que têm paciência para ficar detalhando cada gasto, entrando nas rubricas, fazendo conta, estudando o orçamentês e transmitindo tudo isso ao público estão, na verdade, fazendo um trabalho de ampliação da democracia.


Ontem, vários desses profissionais estavam reclamando da falta de informações durante a entrevista.
A ministra Miriam Belchior repetiu inúmeras vezes a expressão "calma, gente", como se estivesse diante de alunos da pré-escola.
Alguns deles são profissionais maduros e com mais conhecimento do tema do que muito funcionário recém-chegado no governo, principalmente os recrutados na militância.


O ministro Guido Mantega disse que não distribuiria, naquele momento, as cópias dos slides com os dados dos quais falava porque, do contrário, ninguém prestaria atenção nele.
Distribuiria depois.
Isso é erro de comunicação.


Os dados precisam ser divulgados com antecedência para que os jornalistas especializados possam entender, ver as inconsistências, fazer contas, consultar analistas, e depois tirar suas dúvidas com as autoridades que estavam ali para dizer que estão cortando R$50 bilhões do orçamento.

Nem todo corte é bom.
Os cortes não são virtuosos por si mesmos.
É preciso entender onde mesmo foi cortado, de que forma foram feitos os cálculos, que escolhas fizeram os gestores públicos para entender a consistência ou qualidade dos cortes.


Os números não podem ser despejados sobre os jornalistas para que eles os aceitem num ato de fé.
É fácil acreditar que vão ser cortadas 50% das verbas de viagens, porque isso depende apenas da ordem de não viajar.
Mas como se calcula exatamente o que será reduzido de gasto com o resultado de uma auditoria que ainda não foi feita?


Ou como se decide que 10% dos gastos com seguro desemprego serão reduzidos em fraudes que serão encontradas no futuro?

O ministro Guido Mantega fez uma suposição interessante:
as despesas com seguro-desemprego devem ter fraude porque estão aumentando num período em que caiu o desemprego.
É, pode ser fraude.


Mas como está havendo, felizmente, mais formalização, há também um potencial maior de pedidos de seguro-desemprego no futuro, porque, como se sabe, só trabalhadores formais têm esse direito.

O ministro Guido Mantega continua com seu contorcionismo para tentar convencer seus interlocutores de três ideias diferentes:
de que realmente mudou e agora está convencido de que o controle dos gastos é necessário;
de que nunca mudou e sempre foi austero;
de que o seu corte de gastos é diferente dos cortes de outros governos porque manterá a economia crescendo no mesmo ritmo.

Ele precisa escolher uma versão das três e se concentrar nela para ser convincente para alguém.
Desse jeito, sempre confundirá quem o ouve.


Nos últimos anos o governo aumentou muito os gastos públicos e isso se traduz num número que é o mais relevante:
ano a ano, nos últimos 16 anos, tem aumentando a carga tributária.

O contribuinte está se sentindo asfixiado pelos impostos e já ouve dizer que voltará a CPMF ou algum sucedâneo do imposto do cheque.

Falo em 16 anos porque antes disso é difícil confiar nos números; a alta inflação distorcia tudo. Nesse período, houve anos de controle de gastos, como no segundo mandato do governo Fernando Henrique e nos primeiros anos do governo Lula.

A crise de 2008 foi usada como pretexto pelo governo para ampliar os gastos sob o argumento de que era preciso mitigar o efeito da recessão vinda de fora. Isso faz sentido.

O que não fez sentido foi manter os mesmos estímulos em 2010, quando o país já estava crescendo num ritmo que, ontem, o ministro Guido Mantega disse que não é sustentável.


Míriam Leitão e Alvaro Gribel

Usado como vitrine na campanha eleitoral, PAC já perdeu R$ 8 bilhões


Causou muita irritação à presidente Dilma Rousseff o noticiário destacando os cortes do Orçamento que atingiram em cheio o programa Minha casa, Minha Vida. Bandeira da presidente, que já foi conhecida como "a mãe do PAC", o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) vem tendo suas verbas para 2011 "desidratadas" desde dezembro, quando o Orçamento da União para este ano foi aprovado.

Na longa trajetória de discussão e votação da lei orçamentária, o PAC já perdeu mais de R$8 bilhões.

Uma fórmula para anunciar o corte escamoteando o impacto sobre a área social foi buscada, sem sucesso.
A proposta orçamentária do governo previa uma verba de R$43,5 bilhões para o PAC em 2011, incluindo o programa habitacional Minha Casa, Minha Vida.

Em dezembro, a área econômica avisou aos aliados que viria um ajuste e que era preciso já fazer cortes na proposta orçamentária.

O PAC, então, perdeu R$3,37 bilhões, sendo aprovado com um orçamento de R$40 bilhões. Anteontem, o PAC viu ser reduzida mais uma fatia de R$5,1 bilhões. Segundo integrantes da Secretaria de Orçamento Federal (SOF) informaram à imprensa, o PAC agora terá um gasto autorizado de R$34,6 bilhões.

Em dezembro, a redução de R$3,37 bilhões - fato revelado com exclusividade pelo O GLOBO - causou uma crise no governo. Para acalmar os ânimos, foi incluído um artigo prevendo que o governo poderia fazer a recomposição de forma automática.

Segundo informações da Comissão Mista de Orçamento, a dotação inicial do PAC aprovada no Orçamento ficou em R$39,7 bilhões, mas já foram autorizados novos gastos, fazendo com que hoje esteja em R$40,06 bilhões, antes do corte de R$5,1 bilhões.

Agência O globo:Cristiane Jungblut

A FALÁCIA DO "CORTE" :GASTOS COM VIAGENS SOBEM 32%.

Aumentaram nos primeiros dois meses de 2011 as despesas com viagens - passagens e diárias - no governo federal, primeiro alvo do ajuste fiscal anunciado pela equipe econômica.
No caso das passagens, os pagamentos em janeiro e fevereiro foram 32% maiores do que no mesmo período de 2010:
já saíram dos cofres públicos R$ 80,4 milhões.


Anteontem, ao fornecer detalhes da "consolidação fiscal", a ministra Miriam Belchior (Planejamento) insistiu que os gastos com diárias e passagens seriam reduzidos à metade em 2011.
Nas áreas de fiscalização, o corte seria menor, 25%.


Para tornar mais efetivo o controle, as autorizações de viagens de servidores serão transferidas ao alto escalão dos ministérios, ou, de preferência, aos próprios ministros.
As viagens de servidores foram apontadas como um dos focos de desperdício de dinheiro público.


O primeiro anúncio de restrição nas diárias e passagens foi feito em 9 de fevereiro, embora ainda se aguarde a publicação de decreto da presidente Dilma Rousseff para tornar a medida oficial.
Não há data para edição desse decreto, assim como do que detalhará o limite de gastos dos ministérios.


A análise do comportamento das contas públicas no bimestre dá a dimensão da dificuldade em fazer com que o anúncio seja mais do que um discurso.
Os números foram pesquisados pela ONG Contas Abertas com base em dados lançados pelo Tesouro Nacional até 28 de fevereiro no Siafi (sistema de acompanhamento de gastos da União).


Pendências.
O estouro maior ocorre na compra de passagens e demais despesas com locomoção dos servidores. No primeiro bimestre de 2011, o governo gastou 32% a mais que o mesmo período de 2010.
Além dos R$ 80,4 milhões já pagos, há uma conta pendente deixada pelo governo Lula que supera o dobro desse valor:
R$ 163,3 milhões.
E mais R$ 130 milhões já comprometidos pelo governo Dilma até 28 de fevereiro e ainda não pagos.


Nos pagamentos de diárias, o aumento das despesas foi de pouco mais de 4%, abaixo da inflação, mas bem aquém da meta lançada pelo governo, de corte pela metade. Nos dois primeiros meses de 2010, diárias de servidores civis e militares consumiram R$ 75,2 milhões.
Neste ano, alcançaram R$ 78,2 milhões.


A compra de material de consumo, que os ministérios prometem economizar para poupar os investimentos, manteve-se estável nos dois últimos anos, com R$ 1,2 bilhão já pagos.

Os gastos com premiações culturais, artísticas, científicas e desportivas caíram quase à terça parte (R$ 8,4 milhões), mas ainda resta a conta deixada por Lula: R$ 68 milhões.

Os serviços de consultoria, embora não tenham entrado na lista de alvos do ajuste fiscal, sofreram um freio em novas contratações, mas os pagamentos subiram, pressionados por contas deixadas pelo ano eleitoral.

Os restos a pagar deixados por Lula são um complicador para o ajuste fiscal. O saldo ainda não quitado dessas contas começa março em R$ 35,9 bilhões nos gastos de custeio e R$ 51,9 bilhões nos de investimentos.

O Ministério do Planejamento informou que precisa de tempo para apurar se houve aumento nos gastos com viagens.
Por meio da assessoria, a pasta chamou atenção para o fato de o sistema do Tesouro Nacional registrar pagamentos dos três Poderes, e não apenas do Executivo.


Marta Salomon - O Estado de S.Paulo